sábado, 3 de novembro de 2007

||| RANKINGS, EDUCAÇÃO E DESIGUALDADES.


Portugal, 1974. Numa sociedade globalmente atrasada e fortemente hierarquizada, os percursos de mobilidade social são escassos e raramente passam pela escola. O ensino é dual, estratificado e reprodutor de desigualdades de partida. Nas vésperas do 25 de Abril, 36.4% dos pais dos alunos que frequentavam o micro-cosmos do ensino superior já detinham um grau superior e 64.7% possuíam 4 ou mais anos de escolaridade. Em média, para um casal da classe operária e se nos detivermos exclusivamente no valor da propina mensal, ter um filho no ensino superior equivaleria a gastar mais de 8% de um já depauperado orçamento familiar. Para a esmagadora maioria da população portuguesa, ter um filho na universidade era então uma impossibilidade perpetuadora de assimetrias sociais.


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Depois de 1974, em poucas décadas, o ensino expande-se de uma forma espantosa. Multiplicam-se escolas, universidades, institutos. Aumentou a procura e a oferta. Desenvolveu-se a acção social escolar, reorganizaram-se os currículos, dotaram-se as instituições de ensino de condições físicas e humanas consideráveis. Construíram-se bibliotecas, pavilhões gimnodesportivos, cantinas, inúmeras estruturas de apoio. O ensino público português, independentemente das suas falhas, tem cumprido um papel absolutamente determinante na recuperação do atraso que herdámos do salazarismo. E, ao contrário do discurso oficioso, sabemos hoje que um diploma do ensino superior continua a ser a melhor forma de resistir ao desemprego.


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No meio de tudo isto e do espantoso papel desempenhado pela educação pública em Portugal nos últimos 30 anos, surgem os rankings dos exames do ensino básico e secundário. Pela minha parte não tenho absolutamente nada contra a divulgação de informação, somente contra a ignorância. E os rankings, que não passam de uma seriação de dados, têm sido falsamente apresentados pela direita como uma hierarquia da qualidade dos estabelecimentos de ensino. Nada é mais errado e demagógico. No mínimo, teríamos de desenvolver uma paridade de poder educativo entre cada uma das escolas que envolvesse meio social, número de alunos ou habitus familiar.

O habitus de Bourdieu, com efeito, é um dos mais importantes conceitos para a selecção do meio escolar, demonstrando o peso determinante do meio familiar e da «matriz de percepções» do actor social nos seus resultados, que são variáveis consoante a classe de origem e que tendem a potenciar ou a dificultar as lógicas de manutenção ou diferenciação da mobilidade social. O papel da escola pública é também -- sobretudo? -- atenuar esse universo de desigualdade, dotando os alunos de recursos para limitarem o impacto dessas diferenças nas suas escolhas futuras. Que, por se turno, estão dependentes do «universo de possíveis» de casa um, também ele desigual para o filho de um operário, de um funcionário público, de um empresário, de um desempregado de longa duração ou, digamos, de Jardim Gonçalves.


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Não sei como pode ser assim tão difícil de compreender que os resultados escolares, previsivelmente, não deverão ser propriamente distintos numa turma de X alunos cujos pais não tenham cursos superiores, em famílias sem estímulo particular pela cultura ou pela leitura, sem valorização simbólica do papel da escola e do ensino, cujos consumos caseiros não sejam o Público mas o Destak, uma peça de teatro mas a Família Superstar, sem acesso a computador com Internet, sem possibilidade de pagar a um explicador ou capacidade de perceber qual a diferença entre a Universidade X ou Y e o Curso A ou B, integrando tantas vezes meios sociais onde as preocupações das crianças não são os exercícios de matemática ou química mas o alcoolismo, o desemprego e a falta de dinheiro dos pais para pagar as contas ao fim do mês. Acontece que a «culpa» desta situação não é da escola pública, como alguma direita quer fazer crer, mas de fenómenos sociais mais amplos e problemáticos que têm de ser atacados por várias vias e que não se resolvem com cheques-ensino.


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No Portugal de 2007, esse seria o caminho mais curto para voltar à escola dual e estratificada do «antigamente», provocando um progressivo desinvestimento no ensino público como motor insubstituível de correcção de múltiplas desigualdades sociais de partida. Isto é, desigualdades familiares, estruturantes, independentes do «mérito» do aluno para tirar 18 ou 19. Daí que inúmeras licenciaturas já sejam «endogâmicas»: alguém quer arriscar qual é a percentagem de filhos de médicos que se tornam médicos? E não, não é a «genética» nem o «sangue» que o explica, mas um habitus que manifesta uma profunda desigualdade no acesso a bens simbólicos, culturais, educacionais. A culpa disso é da escola pública?


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Os próprios rankings sustentam claramente essas diferenciações e só a mais pura cegueira ideológica pode fazer esquecê-las ou negá-las: em escolas onde mais de 100 alunos fazem exames, os resultados dos estabelecimentos públicos superam os dos privados. Mais: as escolas com prestações mais baixas, sem excepção, têm todas alunos de meios sociais desfavorecidos. Por outro lado, as escolas dos grandes centros urbanos e com alunos maioritariamente provenientes de classes médias e médias-altas estão mais bem posicionadas nos rankings. E o país das escolas também se divide entre litoral e interior. Tudo isto concorre para a diferenciação global do ranking das escolas, que obviamente não é imune às contradições -- sociais, culturais, económicas -- de Portugal no seu todo.


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Quanto ao cheque-ensino, vamos supor que ele entra em vigor tal como tem sido apresentado pela direita. E imaginemos que um pai se dirige a uma escola privada para inscrever o seu filho. Vamos partir do princípio que essa escola é o Colégio dos Cedros, em Vila Nova de Gaia, apresentado hoje no Público: aí estudam 353 alunos, do pré-escolar ao secundário. São todos rapazes e o seu meio social de origem é elevado. O Colégio disponibiliza actividades extracurriculares como órgão e ballet, as propinas ultrapassam os 500 euros no ensino secundário e a selecção é feita através de entrevista com um membro da direcção da escola. Alguém arrisca qual seria a resposta para o filho de um cantoneiro? De uma empregada de limpeza? De um operário? Não brinquemos. O cheque-ensino não só não resolve nenhum dos problemas que já estão identificados no ensino portugês, como agrava o estigma da estratificação. Se a grande resposta da direita para o problema da educação em Portugal é este, então estamos conversados.

# Tiago Barbosa Ribeiro in Kontratempos [link de origem]

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